O olhar absconso e a Perspectiva Kung Fu
Entre as imagens possíveis para expressar a profundidade da experiência do Kung Fu, talvez uma das mais reveladoras seja a do olhar absconso. Não se trata de um olhar distraído ou distante, mas de um olhar que se recolhe em profundidade, como se buscasse atravessar o véu das aparências em direção a uma dimensão mais íntima do real.
O filósofo Peimin Ni, ao propor a ideia de uma “Perspectiva Kung Fu”, nos convida a pensar o Kung Fu não apenas como uma arte marcial, mas como uma forma de compreender a vida e de habitar o mundo. Como ele afirma em Kung Fu Panda and the Perspective of Kung Fu (2012), o termo Kung Fu “não se refere primariamente às habilidades marciais, mas ao processo de cultivo através do qual uma pessoa se transforma” (Ni, 2012, p. 27). O critério não é, portanto, a natureza da atividade, mas a qualidade da presença que nela se instala.
O praticante de Kung Fu, ao se deter nesse olhar, não se fixa
É justamente aqui que o olhar absconso se torna decisivo. O praticante de Kung Fu, ao se deter nesse olhar, não se fixa apenas no resultado imediato de um movimento ou na eficácia técnica de um gesto. Seu olhar mergulha em outra dimensão: como esse gesto reverbera em sua própria constituição? O que nele se revela como caminho de transformação?
Se o olhar comum mede o sucesso pelo efeito externo — o golpe que acerta, a técnica que funciona — o olhar absconso mede pela ressonância interior. É um olhar que percebe na repetição a revelação, no detalhe o abismo, no exercício aparentemente banal o prenúncio de um amadurecimento silencioso.
Na linguagem de Peimin Ni, trata-se de compreender que “Kung Fu é uma perspectiva que valoriza o processo sobre o produto, a transformação sobre a posse, o cultivo sobre a mera execução” (Confucianism, Daoism, and Buddhism: Three Roads to Peace, 2010, p. 114). O olhar absconso é, assim, uma espécie de instrumento invisível. Ele não produz som nem espetáculo, mas orienta o praticante a permanecer no cultivo, a atravessar as camadas superficiais do fazer até tocar a textura oculta do ser.
Esse olhar não busca a utilidade imediata; busca a transformação duradoura. Quem o observa de fora pode julgá-lo distante, mas na verdade ele está plenamente presente, em outra frequência, atento ao modo como o real se desdobra não apenas diante dele, mas através dele.
É nesse ponto que o pensamento de François Jullien oferece uma ressonância fecunda. Em seu Tratado da Eficácia (1996), Jullien distingue a eficácia segundo a lógica ocidental — calculada, projetada, voltada a resultados — da eficácia no pensamento chinês, entendida como processual, latente e silenciosa. Para ele, a verdadeira eficácia “não é o fruto de um plano deliberado, mas o efeito natural de uma predisposição cultivada” (Jullien, 1996, p. 45).
Um olhar absconso no Kung Fu se revela na paciência de deixar que o invisível amadureça
O olhar absconso, nessa perspectiva, aproxima-se do que Jullien chama de atenção à propensão das coisas: uma vigilância discreta, que não força o acontecimento, mas o acompanha e o deixa desdobrar-se. Assim como o praticante de Kung Fu se transforma na constância de gestos aparentemente banais, a eficácia do olhar absconso se revela na paciência de deixar que o invisível amadureça até que o visível se manifeste.
Desse modo, podemos dizer que o diálogo entre Peimin Ni e François Jullien nos ensina que a verdadeira força não está naquilo que aparece de imediato, mas na transformação silenciosa que se dá dentro e através de nós. O olhar absconso é, portanto, não apenas uma atitude contemplativa, mas uma estratégia existencial: ele revela que o Kung Fu, enquanto perspectiva de vida, não consiste em conquistar resultados, mas em habitar plenamente o processo pelo qual nos tornamos outros.
Eu vejo através da Perspectiva Kung Fu?
O professor Peimin Ni chama de “Perspectiva Kung Fu” a atitude de ler uma obra não apenas como a descrição de fatos ou acontecimentos, mas como a abertura de uma possibilidade existencial — um modo de inspirar a forma como alguém pode viver sua própria vida.
Vista a partir dessa perspectiva, a passagem não se limita ao registro do que ocorreu, mas atua como um lembrete pedagógico, um convite a imaginar o que uma pessoa poderia ser capaz de realizar, mesmo que tal realização pareça quase inatingível.
Assim, o valor do texto não está tanto em sua veracidade factual, mas em sua capacidade de sugerir caminhos de cultivo. Ele nos recorda que o Kung Fu, entendido como processo de transformação pessoal, não se mede pelo grau de dificuldade externa, mas pela disposição interna de enfrentar o impossível como horizonte de aperfeiçoamento.
É aqui que podemos falar do olhar absconso. Tal olhar não busca apenas o visível ou o imediato, mas se recolhe em profundidade para captar o que ainda está latente, em vias de se tornar. Ele se alinha à “Perspectiva Kung Fu” porque desloca a atenção do fato bruto para o modo silencioso de transformação que ele pode inspirar.
Nessa direção, a leitura sob o olhar absconso aproxima-se da reflexão de François Jullien em seu Tratado da Eficácia. Para Jullien, a verdadeira eficácia não é a conquista visível e repentina, mas a eficácia do processo, cultivada no invisível até que os resultados amadureçam por si mesmos.
Ler um texto, um gesto ou um ensinamento sob a Perspectiva Kung Fu é justamente reconhecer essa potência de transformação discreta, mas irreversível.
Desse modo, tanto Ni quanto Jullien convergem ao nos lembrar que o essencial não está na exatidão do acontecimento, mas na capacidade de deixar que ele se torne propensão, isto é, um movimento de cultivo interior que, aos poucos, nos transforma.
O olhar absconso é, então, a chave para perceber esse processo: um olhar que não se detém na superfície, mas que acolhe no silêncio o poder transformador do invisível.
📖 Referências
- Ni, P. (2010). Confucianism, Daoism, and Buddhism: Three Roads to Peace. St. Augustine’s Press.
- Ni, P. (2012). Kung Fu Panda and the Perspective of Kung Fu. In: Kung Fu Panda and Philosophy: The Spirit of the Warrior. Open Court.
- Jullien, F. (1996). Tratado da Eficácia. Lisboa: Instituto Piaget.