A Transmissão Correta do Legado
Na tradição de nossa linhagem, receber o legado (Yi But 衣缽) não significa apenas acumular conhecimento de dispositivos e habilidades corporais, ou memórias de combates simbólicos. Yi 衣, a vestimenta, e But 缽, a tigela do monge, simbolizam a legitimidade de uma transmissão, a entrega genuína de um caminho de vida.
O Patriarca Moy Yat sempre nos lembrava que a verdadeira transmissão (Jan Chuen 真傳) não ocorre por acaso, nem por apropriação indevida, mas por um processo formal e profundo, onde mestre e discípulo se encontram em um laço de confiança e responsabilidade.
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Esse processo se desdobra em três modos de transmissão, que não são apenas conceitos, mas etapas vividas na relação entre mestre e sucessor:
1. Bei Chuen 秘傳 – A Transmissão Secreta
“Secreto” não significa algo escondido ou proibido, mas aquilo que só pode ser compreendido na intimidade da convivência. É no dia a dia, no gesto simples, na palavra lançada no momento certo, que o discípulo recebe ensinamentos que não cabem em manuais ou demonstrações públicas.
Na prática, Bei Chuen se revela quando o discípulo aprende a partir do olhar atento, quando percebe o não dito, quando compreende o sentido por trás da ação do mestre. É nesse espaço que nasce a verdadeira afinidade e a possibilidade de internalizar o Kung Fu como experiência viva.
2. Joi Chuen 再傳 – A Retransmissão
Retransmitir não é apenas repetir o que foi recebido, mas renovar e atualizar o que foi herdado. Joi Chuen acontece quando o discípulo já amadureceu a ponto de poder recriar o ensinamento dentro de si e, então, passá-lo adiante com vida própria.
Na prática, Joi Chuen exige responsabilidade: é compreender que ao retransmitir, o sucessor não apenas carrega o nome da linhagem, mas também a integridade do que recebeu. Isso significa não reduzir o Ving Tsun a mera técnica marcial, mas preservar sua essência como um caminho humano de cultivo.
3. Fan Chuen 分傳 – A Transmissão Individualizada
Fan Chuen representa o cuidado de oferecer a cada discípulo aquilo que lhe cabe receber. Não existe uma transmissão uniforme ou padronizada: cada pessoa tem sua medida, seu tempo e sua forma de absorver o legado.
Na vida prática, Fan Chuen exige discernimento do mestre, que precisa reconhecer a singularidade de cada discípulo, e também humildade do aprendiz, que deve aceitar que recebe o que está preparado para carregar. Esse processo garante que a transmissão seja viva, justa e eficaz, e não um acúmulo indiscriminado de informações.
O Sentido Maior da Transmissão
Assim, podemos compreender que Bei Chuen, Joi Chuen e Fan Chuen não são três modos separados, mas três dimensões que se entrelaçam na jornada do discípulo com seu mestre:
- O segredo vivido (Bei Chuen),
- a renovação do que se recebeu (Joi Chuen),
- e a adequação ao que se pode carregar (Fan Chuen).
Somente quando esses três processos se completam, é possível falar de uma transmissão genuína (Yi But Jan Chuen 衣缽真傳), onde não apenas os dispositivos corporais, o Sistema Ving Tsun, mas também o espírito vivo do Ving Tsun é realmente entregue.
Nosso compromisso, como discípulos e sucessores, é cuidar para que esse legado não seja reduzido a uma herança material ou a uma memória superficial. Ele deve ser vivido, recriado e transmitido com a mesma integridade e profundidade com que o Patriarca Moy Yat nos ensinou.
A Importância da Abertura Cerimonial
Para que tudo isso não se perca, nossa tradição estabelece a leitura da Abertura Cerimonial, como está registrada na página 31 do Compêndio. Ela recorda que não estamos sós em nossa jornada, mas fazemos parte de uma linha ininterrupta de transmissão:
O trecho inicial relembra o marco fundador do Ving Tsun:
“Segundo a tradição por nós recebida, no Reinado de Yung Jing 雍正, o Monastério Siu Lam 少林 foi destruído pelo fogo. Uma das sobreviventes, a Monja Ng Mui 五枚, transmitiu um sistema para a Fundadora Yim Ving Tsun 嚴詠春 que os organizou em seis domínios...”
Esse início situa o praticante dentro de uma linha histórica de transmissão, que não é apenas lendária, mas simbólica: toda prática de Kung Fu só tem sentido quando é entendida como herança recebida e cultivada.
Na sequência, o texto recorda a contribuição de Ip Man 葉問:
“Somos gratos ao Patriarca Ip Man 葉問 [...] que tornou o Sistema Ving Tsun 詠春 mundialmente respeitado, confirmando que as particularidades do nosso legado podem ser uma importante contribuição para o mundo contemporâneo.”
Aqui vemos o reconhecimento de que a transmissão não se encerra no passado: ela ganha relevância justamente porque é capaz de dialogar com o presente, oferecendo uma contribuição viva ao mundo.
E por fim, o texto coloca em destaque o papel do Patriarca Moy Yat 梅逸:
“Essa façanha foi realizada por discípulos como o Patriarca Moy Yat 梅逸, representante da nona geração e idealizador da Denominação Moy Yat Ving Tsun 梅逸詠春, que representa o compromisso de salvaguarda do Sistema Ving Tsun 詠春 através de seu diferencial de contribuição, a chamada ‘Vida Kung Fu 功夫’.”
Com isso, a Abertura não é apenas um texto histórico, mas um ato de legitimação: recorda que a transmissão só é autêntica (Jan Chuen 真傳) quando está enraizada em uma linhagem reconhecida, sustentada por cerimônias formais, e voltada para a continuidade da vida Kung Fu.
Relação com a Transmissão Genuína e Legítima
O texto da Abertura Cerimonial cumpre três funções que se alinham ao que Patriarca Moy Yat ensinava sobre Yi But Jan Chuen 衣缽真傳:
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Recordar a origem (Bei Chuen 秘傳)
O “segredo” não está em mistério esotérico, mas no fato de que só quem se coloca diante da cerimônia pode ouvir, lembrar e assumir o peso da tradição. -
Renovar o sentido (Joi Chuen 再傳)
A cada cerimônia, o texto não apenas se repete: ele nos lembra que somos nós, aqui e agora, que precisamos renovar a fidelidade à linhagem e atualizar o legado recebido. -
Individualizar a responsabilidade (Fan Chuen 分傳)
Cada discípulo que ouve a leitura é chamado a se reconhecer como parte única desse fio contínuo. Não se trata de um legado abstrato, mas de algo que lhe foi confiado pessoalmente.
O Valor da Legitimação
Assim, a Abertura Cerimonial é como um “selo” que autentica a transmissão:
- Ela conecta o praticante às raízes históricas (Ng Mui, Yim Ving Tsun, Ip Man).
- Reafirma a legitimidade da linhagem Moy Yat, pela qual recebemos o sistema.
- Declara publicamente que o que vivemos em cada cerimônia é parte de uma transmissão genuína, não um conhecimento disperso ou apropriado.
É por isso que Patriarca Moy Yat insistia que Yi But Jan Chuen 衣缽真傳 só existe quando há cerimônia. A leitura da Abertura Cerimonial é o momento em que nós, sucessores, confirmamos que não estamos apenas praticando técnicas, mas assumindo o compromisso de continuar um legado legítimo.
A leitura desse texto nas cerimônias nos conecta diretamente com nossos ancestrais, reforçando que a transmissão que recebemos e levamos adiante é genuína e legítima. Não é apenas um ato de ensinar técnicas marciais, mas de assumir responsabilidade pública diante da linhagem e da comunidade Kung Fu.
O Sentido Maior da Transmissão
Assim, compreendemos que Bei Chuen, Joi Chuen e Fan Chuen só encontram sua plenitude quando integrados ao espírito da Abertura Cerimonial. Pois ela nos lembra que não apenas transmitimos conhecimento, mas carregamos a memória, a dignidade e a legitimidade de todo um legado.
Somente assim podemos falar em Yi But Jan Chuen 衣缽真傳, a transmissão genuína que une o invisível da convivência ao visível da cerimônia, garantindo que o Ving Tsun siga vivo e íntegro para as próximas gerações.
🔵 Guia de Leitura da Abertura Cerimonial
1. Origem da Tradição
“Segundo a tradição por nós recebida, no Reinado de Yung Jing 雍正, o Monastério Siu Lam 少林 foi destruído pelo fogo. Uma das sobreviventes, a Monja Ng Mui 五枚, transmitiu um sistema para a Fundadora Yim Ving Tsun 嚴詠春 que os organizou em seis domínios...”
Comentário:
Este trecho nos coloca no início da narrativa da linhagem. Não é apenas um dado histórico, mas um lembrete de que o Ving Tsun nasce de uma transmissão direta (Ng Mui → Yim Ving Tsun). A fundadora organizou os seis domínios como uma forma de preservar e dar continuidade ao que recebeu. Aqui já se anuncia o princípio de Bei Chuen 秘傳 (transmissão íntima): um ensinamento que não é público, mas confiado a alguém preparado para recebê-lo.
2. Reconhecimento do Patriarca Ip Man
“Somos gratos ao Patriarca Ip Man 葉問, discípulo do Patriarca Jaau Chin Wa 找錢華 e representante da oitava geração, que tornou o Sistema Ving Tsun 詠春 mundialmente respeitado, confirmando que as particularidades do nosso legado podem ser uma importante contribuição para o mundo contemporâneo.”
Comentário:
Aqui aparece o elo de Joi Chuen 再傳 (retransmissão). O Patriarca Ip Man recebeu, amadureceu e retransmitiu de tal modo que o Ving Tsun alcançou o mundo inteiro. O texto ressalta que nossa tradição não é fechada em si mesma: sua legitimidade está também em sua capacidade de contribuir para a vida humana no presente. O que foi recebido não se fossiliza, mas se renova.
3. A Obra do Patriarca Moy Yat
“Essa façanha foi realizada por discípulos como o Patriarca Moy Yat 梅逸, representante da nona geração e idealizador da Denominação Moy Yat Ving Tsun 梅逸詠春, que representa o compromisso de salvaguarda do Sistema Ving Tsun 詠春 através de seu diferencial de contribuição, a chamada ‘Vida Kung Fu 功夫’.”
Comentário:
Aqui vemos o espírito de Fan Chuen 分傳 (transmissão individualizada). O Patriarca Moy Yat recebeu o legado de Ip Man, mas o transmitiu a seus discípulos a seu modo próprio, marcando sua contribuição pessoal: a ênfase na Vida Kung Fu. Isso mostra que a transmissão não é padronizada, mas se ajusta a cada sucessor, sem perder legitimidade.
4. O Compromisso Atual
“Com o intuito de valorizar a dedicação dos nossos ancestrais, Grão-Mestre Leo Imamura, discípulo do Patriarca Moy Yat 梅逸 e representante da décima geração, foi o responsável pelo desenvolvimento do Programa de Salvaguarda Moy Yat Ving Tsun 梅逸詠春, a pedido de seu mestre.”
Comentário:
O texto traz a transmissão para os dias de hoje, mostrando que a legitimidade não se encerrou no passado. O Programa de Salvaguarda é a forma pela qual a linhagem atual organiza e garante que a transmissão permaneça genuína. É a atualização contínua do Yi But Jan Chuen 衣缽真傳: a vestimenta e a tigela do monge que passam de geração em geração, com cerimônia, responsabilidade e legitimidade.
Conexão com a Transmissão Genuína
Cada parágrafo da Abertura Cerimonial reafirma uma dimensão da transmissão:
- Bei Chuen 秘傳 (segredo vivido): Ng Mui → Yim Ving Tsun (a origem íntima e confiada).
- Joi Chuen 再傳 (retransmissão responsável): Ip Man → mundo contemporâneo (a renovação e difusão).
- Fan Chuen 分傳 (transmissão singular): Moy Yat e sua ênfase na Vida Kung Fu (a marca pessoal e legítima).
Ao final, vemos que só podemos falar em Yi But Jan Chuen 衣缽真傳 quando há um fio ininterrupto de transmissão — confirmado pela cerimônia e pela leitura da Abertura. É nesse momento que cada discípulo se reconhece não como praticante isolado, mas como parte de uma linha viva e legítima, recebida e a ser entregue às futuras gerações.