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Consumir-se em Luz: A Vela no San Toi e a Sabedoria de Vieira

A Cor da Vida e da Memória: O Simbolismo da Vela Vermelha no San Toi
27 de agosto de 2025 por
Consumir-se em Luz: A Vela no San Toi e a Sabedoria de Vieira
Sifu Monnerat
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A Chama da Vela no San Toi do Ving Tsun Kung Fu


Eu como Líder da Familia Kung Fu, Moy Ka Lai To, continuo refletindo no coração do San Toi, a mesa memorial do Ving Tsun Kung Fu, a vela se ergue como um símbolo silencioso e eloquente. Ao ser acesa, não apenas ilumina o espaço físico, mas também acende em nós a consciência daquilo que recebemos e do que estamos destinados a transmitir. 

O gesto de acender a vela é um rito de lembrança, mas também de compromisso: cada chama que se levanta é a presença da linhagem que nunca se apaga.

O padre Antônio Vieira (1608–1697), em seu célebre Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, escreve:

“A vida do homem é uma vela que, logo que se acende, começa a consumir-se, e só se apaga quando acaba.”

Na imagem de Vieira, a vida não é um bem estático, mas um processo de desgaste inevitável. Tal qual a vela, que ao iluminar se consome, também nós gastamos nossa existência ao ofertá-la aos dias. 

A metáfora nos toca porque revela a verdade mais simples: viver é queimar-se. Contudo, a questão que permanece é como nos consumimos — se apenas em nós mesmos, ou em favor de algo que transcenda nosso tempo.

No San Toi, a vela expressa justamente isso: o desgaste da matéria que se converte em luz. Ela não representa perda, mas transformação. Sua chama não é o anúncio da finitude, mas da continuidade, pois cada fagulha é memória que atravessa gerações.

O vermelho que protege e vitaliza

Não é por acaso que a vela tradicionalmente acesa no San Toi em Cerimônias Tradicionais de nossa Família é vermelha. Na cultura chinesa, o vermelho carrega uma densidade simbólica profunda: é a cor da vida, da prosperidade, da proteção e da alegria

Como observa o sinólogo Wolfram Eberhard (A Dictionary of Chinese Symbols, 1986), o vermelho na China é associado à “força vital que repele o infortúnio e atrai a plenitude da existência”.

Essa cor, que em festas tradicionais afasta os maus "espíritos" e em casamentos anuncia a fecundidade da união, no altar do Kung Fu simboliza igualmente a proteção da linhagem e a vitalização da prática

O vermelho da vela é a presença da vida que pulsa no discípulo e no mestre, no passado e no presente, no indivíduo e na coletividade.

Confluência de horizontes

Quando aproximamos Vieira e a tradição chinesa, encontramos um encontro singular de horizontes. O jesuíta português, no século XVII, via na vela a lembrança de que a vida é breve e deve ser bem vivida. A tradição chinesa, milenar, entende o vermelho da chama como energia vital e auspiciosa, que afasta o mal e fortalece a vida.

Na chama vermelha do San Toi, essas duas visões se entrelaçam. Somos recordados de que cada instante é irreversível e, ao mesmo tempo, carregado de potência: a vida se consome, mas esse consumo pode iluminar, proteger, aquecer e gerar continuidade.

A Vela e a Eficácia segundo François Jullien


Ao refletirmos sobre a vela no San Toi, também podemos aproximar essa imagem das ideias de François Jullien, filósofo francês especialista em pensamento chinês, em sua obra Tratado da Eficácia (1996). Para Jullien, o Ocidente e a China compreendem a eficácia de modos distintos:

  • No Ocidente, a eficácia é vista como resultado de uma ação consciente, planejada, que parte de um sujeito para alcançar um fim.
  • Na China, por outro lado, a eficácia está em seguir o fluxo natural das coisas (shi), aproveitando a propensão que se acumula e conduz discretamente ao efeito.

A metáfora de Vieira, que vê a vela como a vida que se consome até o fim, dialoga com a visão ocidental: há um começo, um desgaste e um fim — uma linha reta que conduz inevitavelmente ao apagar da chama.

Já no San Toi, especialmente quando pensamos a vela vermelha à luz da cultura chinesa, encontramos algo mais próximo do que Jullien descreve: o consumo da vela não é apenas perda, mas transformação. 

A chama atua sem esforço, iluminando e aquecendo de forma silenciosa. Sua eficácia não está em alcançar um objetivo externo, mas em cumprir sua natureza — consumir-se e, nesse ato, gerar luz e continuidade.

O vermelho da vela reforça esse sentido. Como já citado de Wolfram Eberhard (A Dictionary of Chinese Symbols, 1986), o vermelho na China é associado à vida e à proteção. Acender uma vela vermelha, portanto, não é apenas um gesto ritual, mas a ativação de um campo de propensão simbólico que, ao longo de séculos, se consolidou como cor auspiciosa. Sua eficácia não nasce de uma intenção momentânea, mas do acúmulo cultural que confere ao vermelho a capacidade de proteger, vitalizar e afastar o infortúnio.

Assim, a chama da vela no San Toi reúne três horizontes:

  • A lembrança cristã, via Vieira, de que a vida é breve e deve ser bem vivida.
  • A tradição chinesa, que vê no vermelho e na chama uma força vital de proteção e prosperidade.
  • A leitura de Jullien, que nos ajuda a perceber a eficácia dessa chama não como o resultado de um ato intencional, mas como a potência silenciosa de um processo natural que, ao se cumprir, gera efeitos profundos.

✨ Desse modo, sempre que me surge a oportunidade em nosso Mo Gun, falo aos Membros que a vela no San Toi não apenas nos lembra da transitoriedade da vida, mas também nos ensina a confiar na eficácia discreta da transformação. Consumir-se pode ser, ao mesmo tempo, memória, proteção e continuidade — um gesto onde Oriente e Ocidente se encontram, e onde o Kung Fu se afirma como caminho de sabedoria.

Conclusão

A vela do San Toi não é mero ornamento. É presença, é memória e é ensinamento. Como nos lembra Vieira, “a vida é vela que se consome”, mas a tradição chinesa acrescenta: quando essa vela arde em vermelho, sua luz se torna também escudo, bênção e promessa.

Queimar-se, portanto, não é perder-se — é doar-se em luz. No San Toi de nossa Família Kung Fu, essa chama rubra nos convida a viver como a vela: a consumir-nos, mas iluminando os que vierem depois.

A eficácia está em seguir o fluxo natural das coisas (shi), aproveitando a propensão que se acumula e conduz discretamente ao efeito. 

“Enquanto estudante de Kung Fu, como você interpreta, ou como está ‘lendo’ a linguagem silenciosa a partir da experiência corporal em seus braços e nos braços de sua contraparte, um processo de leitura que não é apenas marcial, mas também formativo — e de que maneira esse processo se traduz nas respostas que você constrói em sua vida cotidiana?”

Consumir-se em Luz: A Vela no San Toi e a Sabedoria de Vieira
Sifu Monnerat 27 de agosto de 2025
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