Palestra com a presença de diversas autoridades civis e militares.
Foi com grande honra e senso de responsabilidade que tive a oportunidade de levar a reflexão sobre o Kung Fu e seu papel no desenvolvimento humano ao Senado Federal, palestrando diante de um público seleto, composto por diversas autoridades civis e militares.
Em um ambiente marcado pelo diálogo institucional e pela busca de soluções para os desafios contemporâneos, apresentei a essência de uma arte milenar que vai muito além do combate físico. O Kung Fu, em sua dimensão mais profunda, é um caminho de aprimoramento contínuo — um processo de lapidação pessoal que integra corpo, mente e espírito.
Ao compartilhar essas reflexões no coração político do país, busquei evidenciar como os princípios dessa tradição marcial podem contribuir para formar cidadãos mais conscientes, resilientes e éticos, capazes de atuar com equilíbrio e clareza de propósito nos mais diversos campos da vida.
KUNG FU RICO, KUNG FU POBRE
Um dos aspectos cruciais para o desenvolvimento humano é compreender que ele já existe em nós. Todos nós possuímos esse sentimento de humanidade.
A noção confucionista de Yan destaca o ideograma chinês que representa uma pessoa associada ao número dois (=), ou seja, você e o outro. Gostaria de ressaltar aqui a similaridade com o ideograma Fu (夫), que contém os mesmos elementos e pode significar humanidade.
Existem camadas que encobrem essa humanidade que nasce conosco, ainda na infância, e que se alteram ao longo da vida adulta. Precisamos perceber essas camadas para favorecer o Kung Fu Rico ou o Kung Fu Pobre.
Para a maioria aqui, isso não é novidade. Minha intenção é compartilhar a relação entre a sonoridade de dois termos e como isso soa na vida do nosso Kung Fu.
Nas minhas reflexões, percebi que ser medíocre — e digo isso sem conotação pejorativa — pode ser um grande entrave para desenvolver um Kung Fu Rico (já explico por que uso essa expressão). Para mim, ser medíocre está ligado a acreditar mais ou menos em si mesmo, ou seja, um “médio-acreditador”. Muitos de nós, assim como eu, talvez ainda sejamos medíocres em alguma área de nossas vidas, e esse pouco esforço pode ser insuficiente para nos fazer avançar, mantendo-nos num Kung Fu Pobre.
Quando Kung (功) e Fu (夫) são colocados juntos, representam uma pessoa que possui Mo Dak (武 德), ou seja, princípios morais elevados combinados com habilidade marcial. Kung Fu é a arte de viver que exige corporalidade e consciência estratégica para manifestarmos respostas com excelência.
Ele se revela principalmente nas situações cotidianas, onde não há regras fixas, mas, por meio dos desafios, conseguimos enriquecer nosso Kung Fu.
Daí a importância do que o Patriarca Moy Yat chamava de Vida Kung Fu: o processo de gerir o coração em tudo e com todos.
Como está escrito em Lucas 12:34: “Onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração.”
Falando em coração, lembro que, em 1998, meu Sigung, Patriarca Moy Yat, visitou Niterói e nosso Núcleo, deixando registrado numa placa algo que, anos depois, fez toda a diferença para mim. Mais tarde, meu Si Fu me mostrou um rascunho onde o Patriarca mencionava que havia faltado um ideograma, e que ele fazia toda a diferença. Passei anos interpretando aquilo de uma forma limitada. Mo Saam é algo conhecido por todos nós que estudamos artes orientais, mas não percebi que Sigung queria reforçar justamente essa ideia. Receber esse “aviso” que meu Si Fu guardou por tantos anos me fez refletir sobre onde estava — ou não — o meu coração para enriquecer ou empobrecer meu Kung Fu.
Como está em Mateus 12:34-35: “A boca fala do que está cheio o coração.”
A maneira como pronunciamos nossas ações e respostas — seja na prática marcial ou na vida — pode fazer a diferença entre ter um Kung Fu Rico ou Pobre.
[Contextualizando o motivo deste tema]
Preciso voltar a 1984, quando acabei de fazer um exame de graduação com Sin San Lee Tat Yan, meu primeiro tutor na arte chinesa do Ving Tsun. Ele me perguntou, com certa dificuldade no português, o que eu compreendia por Kung Fu. Não lembro exatamente a resposta, nem se ele entendeu, mas jamais esqueci o que disse: “Isso é Kung Fu² e não Kung Fu¹!”
Talvez tenha sido pela forma como pronunciei. Sinceramente, não entendi de imediato, mas anos depois ouvi meu Sigung, Patriarca Moy Yat, mencionar: “Kung Fu¹ sem sistema não é Kung Fu¹.”
Adapto essa frase: “Kung Fu¹ sem sistema não é Kung Fu¹, e sim Kung Fu².”
Parece confuso, mas explico: na década de 1980, eu sempre pedia ao Sr. Lee para escrever em chinês, pois tínhamos sede por esses termos, dada a pouca disponibilidade de material. Descobri então algo curioso: na língua chinesa, o número 4 (四) é pronunciado em cantonês como “sei”, e a palavra para “morte” (死) também é pronunciada “sei”. Essa semelhança sonora cria uma associação negativa, e por isso o número 4 é evitado na cultura chinesa.
E quando pronunciamos “Kung Fu”? A que remete? Ao que cada um entende e manifesta como Kung Fu. Para nós, isso é muito rico, especialmente no sentido mais profundo.
A autonomia, no entanto, não cabe dentro do Kung Fu, pois dependemos do outro para vencer, através da ampliação da consciência estratégica.
“Isso não é Kung Fu (功夫), e sim Kung Fu (窮苦).” São quase homônimos perfeitos (não no mandarim) e isso me fez repensar minhas atitudes e as das pessoas sob minha responsabilidade, pois elas são pronunciadas diariamente na Vida Kung Fu.
Conclusão
Nenhuma instituição no Ocidente sofre tanto com os postulados da filosofia pós-moderna quanto a família, onde a verdade foi relativizada e há desprezo pelo que é tradicional. Isso inclui todos nós de um Mo Lam tradicional — seja Kung Fu, Aikido, Judô ou Karatê.
Eu mesmo já fiz dezenas de votos de discipulado (baai si) com o mesmo Si Fu, Grão-Mestre Leo Imamura, porque, a cada 5 ou 10 anos, éramos pessoas diferentes, renovando nossa relação.
Não somos quem deveríamos ser, mas também não somos mais quem fomos um dia. Para mim, isso é ser tradicional: renovar o que foi construído ao longo de gerações, e não apenas repetir padrões.
Creio que a família, núcleo criado por Deus para o desenvolvimento saudável — afetivo, psicológico, social e espiritual — caminha rapidamente para o caos. As relações perdem resistência diante das divergências. Na criação dos filhos, muitos pais os superprotegem de frustrações e traumas, gerando neles sensação de onipotência.
Vivemos tempos de “megaegóicos”: pessoas convencidas de que o mundo existe apenas para girar em torno delas. Não aceitam limites, não se submetem a regras, desprezam autoridades, são imediatistas, hipersensíveis e acreditam que, como nos quadrinhos, não envelhecem. Vivem isolados da realidade, evitando qualquer contrariedade, e acreditam que todas as suas demandas devem ser atendidas.
Como está no Salmo 90:12: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que alcancemos coração sábio.”
Um único dia vivido plenamente pode transformar toda uma vida — para uma Vida Rica, um Kung Fu Rico ou um Kung Fu Pobre.
Parafraseando meu Sigung, Patriarca Moy Yat:
“Kung Fu é Vida… e o que é Vida? Vida é tudo!”