O Baai Si na Tradição do Ving Tsun Kung Fu
Reflexões a partir do legado do Patriarca Moy Yat 梅逸 (9GVT)
Entre as muitas expressões que marcam a tradição do Ving Tsun Kung Fu, poucas carregam um peso simbólico tão profundo quanto a cerimônia de discipulado, conhecida como baai si din lai (拜師典禮). Mais do que um rito de passagem, trata-se de uma experiência viva de integração à família marcial, na qual se reconhece não apenas o vínculo com o mestre, mas sobretudo a ligação com a ancestralidade do sistema.
Nos anos que antecederam seu falecimento, o Patriarca Moy Yat 梅逸 (9GVT) dedicou especial atenção à condução das cerimônias de nossa família. Esse cuidado atingiu seu ponto máximo em 2000, quando se preparava, ao lado de seus discípulos, para a maior cerimônia de discipulado da 11ª geração do Clã Moy Yat, realizada em São Paulo.
A expressão baai yap si mun (拜入師門)
Foi nesse período que ele enfatizou algo fundamental: as reverências dos discipulandos não deveriam se dirigir diretamente ao si fu (師父) ou à si mo (師母), mas sim aos jo si (祖師) — os Mestres Ancestrais. A expressão baai yap si mun (拜入師門), literalmente “reverenciar para entrar no portão do mestre”, ganha assim um sentido mais amplo. O discípulo não ingressa apenas na vida de um mestre particular, mas se integra a uma linhagem, a um legado coletivo.
Baai 拜 → saudar, reverenciar, prestar homenagem.
Yap 入 → entrar, adentrar, ingressar.
Si Mun 師門 → literalmente “o portão do mestre”, mas em sentido amplo significa “a família/linhagem do mestre”, isto é, a comunidade do Kung Fu.
Portanto, o significado não é simplesmente “saudar o mestre”, mas “reverenciar para entrar na família/linhagem Kung Fu”. A reverência não é dirigida a uma pessoa individual (Si Fu ou Si Mo), mas ao Si Mun, ou seja, à tradição viva que se corporifica naquela linhagem.
Essa orientação revela muito da consciência do Patriarca nos últimos anos de sua vida. Mais próximo dos Mestres Ancestrais, ele se percebia como um elo vivo dessa corrente, um representante do que havia sido transmitido por séculos. Seu gesto foi também de humildade: mesmo ele, um grande Patriarca, buscou realizar seu próprio baai si com o mestre de Ópera Cantonesa Ng Hoi Ching 伍海清, afirmando que era “como aprender diretamente com os ancestrais”.
No Brasil, em sua última visita, eu Sifu Monnerat estive presente quando meu Sigung Moy Yat trouxe ainda outro ensinamento decisivo: o fat sam (佛心 – coração búdico).
Ao relacionar o fat sam ao ming sam (明心 – clarear a mente/coração) e ao bun sam (本心 – consciência fundadora), ele mostrou que o baai si não é apenas um rito externo, mas uma oportunidade de despertar interno.
O vínculo estabelecido não se limita a pessoas, mas conecta discípulos e mestres ao coração de sua ancestralidade.
A força do baai si: um compromisso vitalício
Essa compreensão ecoa até hoje no trabalho de salvaguarda do Moy Yat Ving Tsun.
O chamado Complexo Cerimonial atua como instrumento estratégico, não apenas para preservar uma tradição formal, mas para ativar e renovar constantemente o potencial humano dos que participam dessa linhagem. É nesse contexto que se revela a força do baai si: um compromisso vitalício, uma escolha consciente de integrar-se a um processo de vida, não apenas de aprendizado dos dispositivos corporais do Sistema Ving Tsun.
O Patriarca Moy Yat costumava insistir que o Kung Fu não se restringe ao que se pratica no mo gun (Polos da família Kung Fu). Ele se manifesta na vida, no modo como se relaciona, aprende e transmite.
O baai si, nessa visão, não é uma formalidade hierárquica, mas um gesto de pertencimento e de reconhecimento daquilo que nos antecede e nos ultrapassa.
Hoje, ao refletir sobre esse legado, torna-se claro que o baai si não é apenas a porta de entrada para uma família marcial, mas uma ponte entre passado, presente e futuro. É reverência, mas também renovação; é humildade diante dos ancestrais, mas também responsabilidade diante das próximas gerações.
Como disse o próprio Patriarca em seu gesto final de discipulado: ao reverenciar os Mestres Ancestrais, não nos curvamos ao peso do passado, mas nos erguemos sustentados por ele.
Para ilustrar como Patriarca Moy Yat via esse processo:
“If someone ask you what is kung fu, the answer: kung fu is life. So then, another question: what is life? Life is everything...” Moy Yat Ving Tsun Kung Fu
Essa clareza remete ao entendimento de que o baai si não é só formalidade, mas porta de entrada para viver o kung fu como vida inteira.
“The purpose of Wing Chun Kung Fu is to lead you to be free and relaxed. This can never be achieved if you are tied physically and emotionally to techniques. You must free yourself from dependence on mechanical expression and trust your body, your Kung Fu to protect yourself…” Vida Kung Fu
Essa ênfase na liberdade, relaxamento e confiança ecoa fortemente na jornada do discipulado: ao entrar na linhagem, o discípulo reconhece que não vai servir apenas para compor uma formalidade, mas para aprender a manifestar o kung fu de modo natural, com presença.
“Kung Fu é vida com o Kung Fu inserido nela.” Kung Fu Life
Essa frase resume bem o que motiva toda cerimônia: não se trata de pertencer só a uma escola, mas de integrar uma tradição que atravessa gerações.
“Essa capacidade de dedicar algum tempo para conviver conosco pode ser chamada Vida Kung Fu, o que é bastante útil. Desta forma, no futuro, quando surgir uma oportunidade para nos ajudar a desenvolver a arte, você estará em condições de fazê-lo.” Kung Fu Life
No rito de baai si, há também essa ideia implícita de compromisso de longo prazo, de responsabilidade, de estar preparado para ensinar ou representar a linhagem.
Hoje, ao refletir sobre esse legado, torna-se claro que o baai si não é apenas a porta de entrada para uma família marcial, mas uma ponte entre passado, presente e futuro — é reverência, mas também renovação; humildade diante dos ancestrais, responsabilidade diante das próximas gerações.
As palavras de Moy Yat nos lembram que “Kung Fu é vida” não como metáfora, mas como realidade que se vive, se incorpora, se manifesta.
Abrir mão da superficialidade e comprometer-se com um caminho que se estende por toda a vida.
Neste momento solene, diante do altar dos ancestrais, um novo discípulo se coloca diante do limiar de sua jornada. O gesto que realizará nesta cerimônia de baai si din lai 拜師典禮 não é uma mera formalidade, mas a expressão de um chamado profundo para viver o Kung Fu em sua forma mais autêntica.
Ao manifestar o “Baai Yap Si Mun” 拜入師門, ele não reverencia apenas o mestre, mas se volta ao Si Mun 師門, a família Kung Fu. O ato de oferecer o chá e de se ajoelhar não é uma submissão a uma pessoa, mas a declaração de pertencimento a um legado que atravessa gerações.
O Patriarca Moy Yat 梅逸 sempre destacou que a reverência do baai si não se dirige exclusivamente ao si fu 師父 ou à si mo 師母, mas em memória aos jo si 祖師 — os Mestres Ancestrais.
Porque não é apenas o indivíduo que se entrega e se integra a vida Kung Fu, mas ao fluxo de transmissão que nos antecede e que seguirá muito além de nós.
Assim, o baai si não se conclui quando termina a cerimônia: ele se inicia. A partir daqui, o discípulo assume um compromisso vitalício de viver o Kung Fu em cada gesto, em cada relação e em cada instante de sua vida.
O discípulo que hoje se curva assume exatamente isso: dedicar tempo, energia e coração ao convívio, para que sua vida se torne um espaço fértil onde o Kung Fu floresce naturalmente.
Esse ato não implica apenas em aprender técnicas ou formas. Ele marca a entrada em um processo de educação integral, onde o discípulo será formado pelo convívio com seus irmãos mais velhos (si hing 師兄), orientando os irmãos mais novos (si dai 師弟), e aprendendo pela vivência contínua com seu Si Fu.
Ao reverenciar, ele não se apequena: ele se engrandece. Não se submete: se eleva em pertencimento. Reconhece que está agora unido a uma linhagem, sustentado pelo conhecimento e sabedoria deixado pelos ancestrais e responsável por manter viva essa corrente para aqueles que ainda virão.
No baai si, o discípulo ajoelha-se e toca o chão com cinco partes do corpo (testa, mãos e joelhos) em três ciclos. Esse gesto em algumas linhagens é chamado em chinês de kau tau (叩頭, literalmente “bater a cabeça”), e meu Si Fu, Grão mestre Leo Imamura menciona como "N'g Tai Tau Dei" (Cinco partes tocam ao chão) e representa a máxima reverência.
Se trouxermos para o campo etimológico ocidental, encontramos que a palavra humildade deriva de humus, que em latim significa “terra fértil, chão”. Ser humilde, portanto, é reconhecer-se ligado ao solo, ao fundamento, ao que nos sustenta.
Assim, o ato de se prostrar ao chão no baai si pode ser compreendido como:
- Retorno às raízes: o discípulo coloca-se novamente no mesmo nível do chão, lembrando que dele veio e a ele retorna.
- Reconhecimento do fundamento: ao tocar a terra, ele reconhece que não é autossuficiente, mas se alimenta da ancestralidade e da tradição, como a planta se alimenta do húmus.
- Abertura para a fertilidade: como o húmus é a matéria que permite a vida florescer, o gesto mostra que, quanto mais humilde for o discípulo, mais fértil será sua vida Kung Fu.
Nesse sentido, a reverência de três vezes não é submissão cega, mas ato pedagógico e simbólico: ela ensina que apenas aquele que se coloca em contato com o fundamento — o chão, o húmus, a tradição — pode crescer de forma sólida.
Patriarca Moy Yat lembrava que “Kung Fu é vida com o Kung Fu inserido nela.” Esse gesto no baai si simboliza justamente isso: viver o Kung Fu a partir da humildade, reconhecendo-se parte de uma corrente maior que nos antecede e que seguirá além de nós.
Este discípulo, a partir de hoje, não caminha mais sozinho. Ele pertence a uma família.
E é com honra e responsabilidade que ele é recebido no Si Mun desta linhagem.
Quem serão os próximos discípulos?
Até este momento, apenas dois tiveram a coragem, a maturidade e a entrega necessárias para se tornarem discípulos de Sifu Monnerat através do baai si. Dois nomes que agora pertencem para sempre ao Si Mun 師門, guardados no seio da linhagem do Ving Tsun Kung Fu.
Mas a pergunta que ecoa é: quem serão os próximos?
O discipulado é, ao mesmo tempo, para todos e para poucos. Para todos, porque o Kung Fu é vida, e qualquer pessoa pode aspirar a transformar sua existência em uma jornada de cultivo, disciplina e sabedoria. Mas não é para qualquer um, porque exige uma decisão radical: abrir mão da superficialidade e comprometer-se com um caminho que se estende por toda a vida.
O discipulado é, ao mesmo tempo, para todos e para poucos. Para todos, porque o Kung Fu é vida, e qualquer pessoa pode aspirar a transformar sua existência em uma jornada de cultivo, disciplina e sabedoria. Mas não é para qualquer um, porque exige uma decisão radical: abrir mão da superficialidade e comprometer-se com um caminho que se estende por toda a vida.
Ser discípulo não significa apenas poder acessar os níveis superiores do Programa MYVTSG, ter um "nome" chinês e entrar para a árvore genealógica de seu Si Fu.
É aceitar viver sob a perspectiva do Kung Fu, cultivando paciência, humildade e perseverança. É compreender que o baai si não termina na cerimônia, mas começa nela — como uma promessa vitalícia de viver e transmitir a arte.
Estou pronto para que minha vida nunca mais seja a mesma?
Aquele que escolhe esse caminho precisa entender que não se trata de um privilégio, mas de uma responsabilidade. O discípulo carrega a linhagem, honra os ancestrais e se torna parte de uma corrente que não pode ser interrompida.
Por isso, a escolha é profunda. Cada candidato deve se perguntar: estou pronto para que minha vida nunca mais seja a mesma?
Aos que hoje hesitam entre o desejo e a dúvida, deixo este chamado:
Não se trata de pressa, nem de impulsividade. Trata-se de escuta.
Se no fundo do coração você sente que o Kung Fu é mais do que luta, mais do que treino, mais do que forma, e que sua vida só encontrará sentido no convívio com seu Si Fu e com sua família Kung Fu, então talvez seja a sua hora.